“Isso não é bom”, disse ao notar que mais da metade da população de Portugal morreu para a peste negra. Pus a palma da mão no queixo e olhei mais para perto da tela do meu PC. “Como eu vou controlar o mercado de Sevilha agora que não tenho mão de obra suficiente?”. Essa não era mais uma partida na reta final de “Crusader Kings 3”, mas sim os anos iniciais de “Europa Universalis V” (Steam) — o recém-anunciado Grand Strategy da Paradox Tinto.
Até então conhecido como “Project Caesar”, as pouco mais de 100h que eu joguei de uma versão beta do novo título da franquia revela que ele vem com uma promessa gigantesca, uma que muda a própria cara da Paradox: O mundo no começo do Séc XIII não é mais um onde você tem controle e decisões impactantes, mas sim um onde você é um “convidado”. Onde ações podem ser favoráveis, mas eventos desfavoráveis estão mais presentes do que nunca. E não há melhor exemplo disso do que uma das maiores adições: o sistema populacional.
Comumente visto na série “Victoria”, a Paradox Tinto abraça a simulação populacional em um grau que eu não vi até então a desenvolvedora sequer chegar perto. Cada região do mundo tem uma contagem populacional que é afetada e alterada por dezenas de fatores. Fertilidade da terra para regiões rurais, facilidade de acesso a um mercado regional, desenvolvimento, e o prospecto de estarem empregados ou não.
Antes que eu entupa a sua cabeça com termos que não vão fazer sentido, deixa eu voltar um pouco. A data inicial da sequência é 1º de abril de 1337, quase 100 anos antes da data inicial de “Europa Universalis IV” — uma nova data, novas dores de cabeça.
Portugal ainda não estava no seu auge, e o período das grandes navegações estava em um horizonte distante. As chamas da reconquista da península Ibérica pelo catolicismo ainda não haviam sido apagadas. Lá estava eu, ao lado da Coroa de Castela, um país gigantesco em comparação com o meu. O que fazer senão ir em direção contrária ao que de fato aconteceu na história?

Uma união entre Portugal e Castela? Jamais. Meu objetivo era melhorar as relações com o sultanato de Marrocos, Granada e Tremecém. O estreito de Gibraltar seria foco de uma nova guerra, e talvez, uma Re-reconquista. Acontece que a teoria é muito, mas muito diferente da prática em “Europa Universalis V”.
Não existem mais botões “mágicos”. Poderes monárquicos ainda estão presentes e continuam separados em “Administrativo”, “Diplomático” e “Militar”; entretanto, esses valores são indicadores de quão bem ou mal um membro do seu gabinete vai fazer uma ação. Sim, um membro do seu gabinete, você não leu errado essa frase.
Os sistemas governamentais de “Europa Universalis V” são inteiramente novos, com uma repaginação tão assustadora (comparado aos anteriores) que eu tive muita dificuldade para me adaptar.
Para a minha jornada de re-reconquista, descobri que não há mais um número “definido” de diplomatas, mas sim um valor total de capacidade diplomática que um país pode realizar. Esse valor é alterado de acordo com a quantidade de ações diplomáticas que estão sendo feitas ou já foram feitas. Uma aliança com outro país reduz essa capacidade consideravelmente.
Outra ação que impacta o valor total da sua capacidade diplomática é o uso dos membros do seu gabinete, que deixam de ser apenas modificadores passivos para membros ativos. Cada país tem no mínimo dois assentos no gabinete; o número pode ser aumentado por reformas, mudanças nas leis, ou governamentais.

Como um dos membros do meu gabinete estava melhorando a opinião geral do meu país perante o mundo, eu só tinha capacidade para melhorar a minha opinião com o Sultanato de Marrocos e criar uma rede de espionagem em Castela. Era cedo demais para romper aliança com eles.
Os anos se passaram, e quanto mais minha opinião com Marrocos melhorava, mais oportunidades de mercado eu tinha (mais sobre isso em breve) e mais pessoas vinham para Portugal em busca de uma nova vida. O cristianismo continuava como religião dominante, mas o islamismo ganhava nova vida na Europa. Eu estava contente. As classes sociais? Nem um pouco.
Essa é outra mudança radical que “Europa Universalis V” realiza; as classes sociais do seu antecessor — um tanto abstratas — deram lugar a grupos que aumentam e diminuem de tamanho ao longo da partida. Portugal, por exemplo, continua dividido pelas classes sociais “monárquicas” — da nobreza, passando pelo clero, chegando à burguesia e desembocando na população geral. Mas cada uma delas é muito mais ativa, vocal e com desejos específicos.
Vale apontar que as classes sociais também são afetadas por fatores externos que incluem, mas não estão limitados a: novos métodos de produção, aumento de alfabetização, novos sistemas de governo mais “atraentes”, mudanças de leis em outros países, rompimento de laços entre países e processos migratórios, e tolerância ou não de religiões. Todos esses elementos são simulados dia após dia em “Europa Universalis V”.
Cada uma delas tem um “peso” calculado pelo tamanho populacional e a importância da instituição na época. Embora o clero fosse formado por apenas 11 mil pessoas, ainda era uma instituição muitíssimo poderosa. E ver o crescimento do islamismo no país os irritou.

Demandas atrás de demandas para que eu desse um “jeito” na situação do país. Para tentar agradá-los, disse que ia manter um conselho de conselheiros do clero. Eles não ficariam tão fortes, e, acredito, seria o suficiente para lidar com as demandas deles.
Eis que veio a facada. A Coroa de Castela descobriu a minha rede de espiões, rompeu laços comigo e se tornou um rival. Eu sabia que eles tinham uma frota muito mais forte do que a minha, e eu precisava correr contra o tempo, e me preparar para uma possível guerra. Só que, com a ruptura da aliança, eu perdi acesso ao mercado de Sevilha — um dos maiores centros da região.
Como pontuei no início da matéria, a população é um dos principais fatores determinantes de “Europa Universalis V”. Ela integra todas as facetas do jogo, mas o que mais me impactou durante esta partida foi a perda do mercado de Sevilha por conta de um embargo imposto pela Coroa de Castela.
O efeito dominó causado foi, no mínimo, desastroso. Bens manufaturados que comprava para atender as necessidades da minha população cessaram, matéria-prima para a construção de navios “zarpou” e produtos que aumentavam a felicidade das minhas principais classes sociais viraram pó.
Fábricas fecharam na região sul de Portugal, houve uma migração em massa para a região norte, um aumento no número de desempregados, classes sociais furiosas com a coroa Portuguesa — comigo. Entrei no vermelho em um piscar de olhos.

Isso é só um pequeno, um pequeníssimo exemplo do impacto do mercado em “Europa Universalis V”. Eu não imaginaria que a Paradox iria ser ousada em praticamente colocar todo o sistema de “Victoria 3” em um outro jogo, mas ela fez isso.
Pegue a construção de uma nau. Em “Europa Universalis IV” basta clicar no botão “construir”, pagar, e depois de alguns meses você a tem na sua frota, certo? Esquece isso. Para ter uma nau em “Europa Universalis V” você precisa não só ter a matéria-prima para construir, mas a data de término é definida pela distância que essa matéria-prima percorre. Fatores como distância, qualidade da estrada, como essa matéria-prima é transportada são só alguns dos fatores que impactam quando a embarcação está pronta.
Dizer que eu ainda estou muito longe de entender o sistema de mercado de “Europa Universalis V”, é ser bem modesto comigo mesmo. Guerras criam demandas temporárias que podem ser aproveitadas por países que produzem certos tipos de bens, o passar dos anos faz com que a população mude o gosto ou se atraia mais ou menos por certos tipos de produtos, etc.
Até quando eu escrevo, ou falo em voz alta, sobre o sistema de mercado de “Europa Universalis V”, eu pareço um lunático. São tantos modificadores, detalhes pequenos, é assustador pensar em gerenciar tudo isso. Com todo o respeito, mas é coisa de maluco. Eu jogo “Hearts of Iron IV”, eu cobri todo o lançamento da expansão “Man The Guns” que mudou o sistema naval e ele não chega sequer perto da complexidade de mercado de “Europa Universalis V”.
Mas o pior ainda estava por vir: a Peste Negra.

Você sabe o que acontece quando um jogo que simula a população de forma dinâmica bate de frente com um evento como a peste negra? Catástrofe. Só nos três primeiros meses mais de 200 mil pessoas morreram. Mais fábricas fechavam, mais fazendas ficavam vazias, o estoque de comida de uma região — que também é simulado dinamicamente — esvaziava cada vez que eu piscava os meus olhos.
Fiz o que pude, isolei certas cidades, criei centros de segregação para os doentes, tudo para que o país não entrasse no mais completo colapso. O pior, eu não podia barrar a venda e compra de produtos de mercados como o de Fãs — após perder Sevilha, era o único a que eu tinha acesso.
“Porra, Lucas, onde você estava com a cabeça, olha no que você se meteu, caralho”. Desculpe o palavrão, mas foi a única reação que eu tive frente ao caos que se tornou a partida de “Europa Universalis V”. Castela, no entanto, não queria muito saber dos meus problemas, muito menos da Peste Negra, e declarou guerra contra mim.
“Ah, ótimo, era o que me faltava, ao menos a guerra em Europa Universalis é —”, não tive tempo de completar a frase antes de olhar para a nova interface de guerra.
Os exércitos de “Europa Universalis V”, além de precisarem de alimentos — mecânica usada em “Crusader Kings 3” — utilizam um novo sistema de posicionamento onde você pode definir a posição das tropas. Ou seja, cavalarias são mais eficazes em flancos, mas podem ser dizimadas se o inimigo estiver com tropas armadas. Outro ponto que soa simples em teoria, mas as múltiplas etapas de uma batalha trazem outros tantos pormenores que é difícil até mesmo de colocar em uma matéria.
As minhas batalhas contra Castela foram, em sua grande maioria, bem-sucedidas por conta de um general mais defensivo e um bom uso de cavalaria. A minha “grande sorte” foi que eu ainda estava em 1380 e o uso de armas ainda não era uma realidade nos exércitos. Uns anos a mais e eu teria certamente perdido. Ainda não sei como, em meio a todo esse caos, eu não perdi a guerra — talvez porque a IA ainda está em desenvolvimento e não tão “agressiva” na conquista territorial. Sei que com certeza não foi com a ajuda de Marrocos, que sequer deu as caras ou respondeu aos meus pedidos de ajuda.

Castela derrotada significava o retorno ao acesso ao mercado de Sevilha e ao começo do texto. Eu não tinha como controlá-lo, já que o meu país tinha sido dizimado pela guerra e pela Peste Negra. No fim da partida, mais de 700 mil pessoas morreram em Portugal — um país que começa com mais de um milhão de habitantes.
Não havia quem manejasse as fábricas, não havia pessoas para arar os campos, o clero estava furiosíssimo comigo, os nobres não tinham as suas peças têxteis que tanto amavam. Brasil? Que Brasil meu amigo? Você acha que eu tive tempo de explorar o mundo? De mandar explorador se enfiar em um navio e navegar pela África? Com que barco? Com que matéria-prima? Só se eu fizesse umas caravelas de bambu ou papel. E mesmo que tivesse, ainda tenho que levar em conta uma necessidade de reparos, já que “Europa Universalis V” possui um clima dinâmico com tempestades, furacões e terremotos. Vi minhas embarcações serem atingidas por uma tempestade em alto mar durante uma patrulha contra piratas e senti o impacto no bolso e na quantidade de materiais para reparo.
Eu quero salientar que esses foram apenas os primeiros 100 anos de uma partida de “Europa Universalis V”, um microcosmo do microcosmo que é o Grand Strategy. Por certas limitações da versão — que ainda está em desenvolvimento e muitas funcionalidades ou estavam bem inacabadas ou sequer propriamente adicionadas, como o novo sistema de missões — eu sequer cheguei ver a reforma protestante ou muito menos a era das revoluções.
Para fins de transparência, a versão em desenvolvimento de “Europa Universalis V” que a Paradox me enviou era um tanto quanto instável. E quando eu digo instável, eu falo de um jogo que em dados momentos sugava 30GB de memória RAM. Havia uma clara falta de otimização, dado o fato que ele ainda está muito longe de ser lançado, eu não levei o desempenho desta versão em consideração durante a produção desta matéria. Também havia uma data limite para acesso da versão em desenvolvimento, tive apenas duas semanas para não só me aclimatar, mas também para aprender a jogar o Grand Strategy. Ela não tinha um tutorial e várias “dicas” estavam obsoletas.
Dado a estas “particulares” da situação na qual eu me encontrei, só reforço que também teria adorado jogar mais com o Sacro Império Romano-Germânico, mas não tive tempo suficiente e, quanto mais eu me aprofundava em uma partida com eles, mais eu ficava confuso. Eles possuem um sistema específico de leis, parlamento, grupos de interesse, população, guerras e a lista só aumenta. Eu congelava toda vez que abria a tela de governo. “Eu… eu não sei o que fazer, eu não sei qual lei eu devo eleger, ou qual caminho seguir”. Sequer sabia qual a melhor pesquisa que eu devia seguir durante os primeiros 100 anos.
É um sistema de governo completamente diferente da Dinastia Yuan, que já tem um sistema “similar” de Mandate of Heaven para “Europa Universalis IV”. As grandes nações, mesmo nessa etapa de desenvolvimento, já se diferenciam tanto, que aprendê-las vai muito além de “Aprender Europa Universalis V”, mas sim reaprender o jogo inteiro.
Este é o maior desafio da Paradox para quem é veterano na franquia para os novatos, e um que ela ofereceu uma resposta parcial na versão beta:“Europedia” e automação.

A “Europedia” é um novo sistema de ajuda bem mais robusto do que qualquer outro Grand Strategy que a desenvolvedora publicou — até mesmo Stellaris. Ele identifica quais os principais problemas do seu país e possíveis soluções. Se você estiver perdendo muito dinheiro e pegando muitos empréstimos, a “Europedia” tem uma série de soluções — opções para construir portos para aumentar a renda no caso de países costeiros, mudanças nas leis para aumentar a coleta de impostos ou desenvolvimento de certas províncias.
Mas é a automação que está no centro e no coração de “Europa Universalis V”; ela está integrada ao ponto de você poder automatizar toda a seleção de leis, compra e venda de produtos no mercado regional, recrutamento de tropas, questões administrativas, pesquisa e até diplomacia. A automação pode ser ligada ou desligada a qualquer momento do jogo.
Eu ainda estou muito dividido sobre o que pensar do sistema. É uma excelente alternativa para quem não quer microgerenciar cada aspecto de um império. Eu certamente o usei quando tive a crise populacional na minha partida de Portugal.
Essa alternativa pode também ser um tiro pela culatra. Eu já tive experiência com jogos que utilizavam algum sistema de automação – primariamente “Stellaris” e “Distant Worlds 2”. Eu gosto muito como “Distant Worlds 2” permite que você tire o controle de partes burocráticas ou entediantes como gerenciamento de combústivel para naves e deixe que eu me foque no trajeto delas. Já o de “Stellaris”…. quanto menos eu falar dele, melhor para a minha sanidade. São quase 10 anos com tendo dores de cabeça com o gerenciamento de setores, e mesmo após a atualização 4.0, ele ainda deixa muito a desejar.
E, mesmo que o sistema funcionasse de forma relativamente competente — e eu não tenho muito do que criticar o de “Europa Universalis V” — ele tirava um pouco da “graça” de ter o controle do futuro da sua civilização ou nação.
Na atual conjuntura, “Europa Universalis V” é um jogo governado acima de tudo pela simulação. A simulação da população, do transporte de bens, de grupos culturais, de mudanças em uma Europa que vai passar pela “Era do Descobrimento”, a reforma protestante, absolutismo, até o seu fim em 1836 pós-revolução francesa.

Admito que em algumas ocasiões eu fiquei tão sobrecarregado de informação, talvez por ainda estar engatinhando no aprendizado de “Europa Universalis V”, que eu pensei “Olha, melhor ligar a automação e deixar o jogo decidir por si só”. O que me garante que isso não vá virar o “padrão” para o jogo daqui para frente? Reforçando que eu só joguei os primeiros 100 anos e sequer entrei na era do Descobrimento.
Essa é uma resposta que talvez nem a própria Paradox tenha ainda.
“Europa Universalis V” é um salto em praticamente todas as áreas em comparação ao seu antecessor, e Grand Strategy no geral. É terrivelmente ambicioso, assustadoramente complexo e mesmo com a pincelada leve que dei nele, rico em detalhes.
Mas ainda tenho dúvidas se vai “funcionar” ou até mesmo ser “agradável” de jogar a longo prazo, sem que esse sistema de automação esteja ativado ao menos em uma das diversas áreas que regem a direção de um país. Sei muito bem que vão ter aqueles aficionados que vão gerenciar cada transação em um mercado regional, ou que vão clicar em cada província e entender as necessidades dela, construir estradas, mover exércitos, e afins. É o panorama geral que me preocupa.
Pouco adianta uma simulação populacional, cultural, religiosa e tecnológica, se o jogo que está sobre todos esses intrincados sistemas fizer com que muitos jogadores abram mão – mesmo que indiretamente, subconscientemente – de controle sob o país. Sei muito bem que os sistemas de “Mana” usados pelos jogos anteriores já estavam mais do que defasados e precisavam ir embora.
Mas o novo sistema de automação ainda não me convenceu. E se ele falhar? E quando ele falhar? Quantas pessoas, por mais experientes que sejam, não vão conseguir entender direito a trajetória de um país ou como ele chegou aonde está na partida porque estavam com o sistema ativado? Tais perguntas vão permanecer sem respostas por ora.
Eu cruzo os dedos e torço para que a Paradox Tinto de fato atinja a ambição toda que as primeiras 100h de “Europa Universalis V” me apresentou. Como tão bem pontuei neste longuíssimo texto, em termos de simulação, é um feito impressionante. Agora basta me convencer que, com mais complexidade, mais instituições, mais tecnologias e mudanças, ele ainda será um bom jogo e não só um mero sistema de automação disfarçado de jogo.