“Meus pés estão me matando”. Uma sentença que pode se tratar das minhas tentativas pífias de tentar andar pela orla do Rio de Janeiro no calor infernal que tem feito desde o começo de 2025 ou o fato que as minhas botas de “Kingdom Come: Deliverance 2” (Steam / PlayStation 5 / Xbox Series S e X) estavam danificadas de tanto caminhar pela Boêmia do Séc. XV criada pela Warhorse Studios. Qual a similaridade? Em ambos os casos eu tive, no fim do dia, uma sensação incrivelmente prazerosa que é difícil de replicar.
A sequência do que eu chamo de “Stalker medieval” começa quase que diretamente após os acontecimentos do primeiro game, com o protagonista Henry e o insuportável Hans Capon — o mimado herdeiro de Rattay – indo para o castelo de Otto von Bergow para entregar uma carta. A esperança é que von Bergow apoie o rei Wenceslas e que, juntos, eles consigam começar a pôr um fim à insurreição iniciada por Sigismund, evitando assim que a nação – na época parte do império Sacro Românico Germânico – seja completamente tomada pelas chamas da guerra.
Como nada na vida de Henry – que perdeu os pais no primeiro game para posteriormente descobrir que ele é adotado – caminha em uma linha reta, não demora muito para que em um piscar de olhos a missão diplomática dê errado. Uma emboscada, a perda de quase todo o seu equipamento, uma briga imensa com Hans Capon ao ponto do último decidir seguir um caminho próprio.
“Ah, agora sim começou Kingdom Come Deliverance 2”, murmurei para mim mesmo.

A Warhorse Studios não hesita em te colocar no fundo do poço e falar “Pronto, agora te vira para sair dele”. Foi, em partes, como a história do primeiro game se desenrolou, e a desenvolvedora repete o feito quase como um “gigantesco tutorial” para te aclimatar no período em que o jogo é ambientado.
Se fosse outro jogo, eu teria revirado os olhos e resmungado da “perda de tempo” que é ter que passar pelos perrengues iniciais de conseguir dinheiro, um local para dormir, não ser detestado pelos habitantes dos vilarejos por parecer um moribundo ou um mendigo. Mas a magia da Warhorse Studios é tornar esses momentos algo singular.
Uma das minhas constantes críticas acerca de certos jogos “modernos” é quão pouca “resistência” eles oferecem ao jogador. Complete uma quest e você é instantaneamente gratificado com uma nova peça de equipamento, um aumento de XP ou um dos terríveis pontos para serem gastos na “árvore de habilidades” cujas escolhas tendem a ser banais. Não é à toa que a maioria dos meus favoritos de 2024 foram jogos indies que oferecem justamente isso. “Kingdom Come: Deliverance 2” é a exceção à regra.
As minhas 20 horas iniciais foram um misto de trabalhar como ferreiro para juntar dinheiro, explorar floresta por plantas para fabricar poções. Quase perdi horas de progresso ao ser pego em uma emboscada, e saí dela com um sangramento sério. Minha sorte é que estava próximo de uma casa de banho e tinha dinheiro suficiente para cuidar das minhas feridas.

E nenhuma dessas atividades é, necessariamente, rápida. Criar poções requer um certo conhecimento e ritmo, criar peças no ferreiro é sobre acertar o ritmo das batidas do martelo sem destruir a peça. Até cuidar da sua própria espada – caso ela seja a sua arma de preferência – significa sentar-se em uma amoladora e ficar alguns segundos afiando-a.
Esses sistemas têm tudo para ser entediantes, mas isso é compensado pelo imenso alívio quando você consegue confeccionar a poção “perfeita” e depois vendê-la para comprar uma nova peça de equipamento, ou forjar a arma que tanto desejava. Os pontos de experiência – obtidos pelo contínuo uso das suas habilidades passivas – são um efeito secundário.
Entre uma forja e outra, a venda de poções ou caça a animais, é nesses momentos de quietude, de caminhar – e posteriormente andar a cavalo – de vilarejo em vilarejo que o título da Warhorse Studios se mostra gigante.
Eu comecei aprender rotas, a falar com mais personagens, esperar dias e noites no jogo para que os comerciantes reestocassem os inventários para comprar o que eu precisava com o meu dinheiro suado. É fascinante ver como um sistema alimenta o outro. Nenhum item no mundo é colocado a “esmo” e nada é “descartável”. Tudo tem um propósito, contexto, utilidade. É a antítese do jogo moderno em que você vende mais da metade do seu inventário porque a grande maioria dos itens é “inútil”. E paralelo a isso, esbarrava com uma quest secundária ou uma atividade que eu sequer tinha ideia de que existia.

A desenvolvedora merece todos os louros pela naturalidade com que ela consegue integrar quests secundárias, a vida de Henry na Boêmia, e a história principal. Uma conversa aleatória em uma taverna resultou em eu participar de um ringue de luta contra os melhores da região. Sopapo pra lá e para cá e saí vitorioso. Foi então que o dono da taverna comentou que eu devia ter ido para o moinho próximo a cidade de Semine, já que eles treinavam lutadores lá.
Alguns minutos depois eu estava em uma outra região do mapa que sequer tinha cogitado explorar, conversando com novas pessoas, participando de outros torneios. Pisquei os olhos e tentava evitar que duas famílias de diferentes cidades continuassem uma briga territorial que, pelo visto, durava décadas.
Preciso mais uma vez abrir grandes aspas aqui, tal como fiz no artigo original, para comentar sobre o excepcional sistema de combate. Se há um ponto em que a Warhorse Studios melhorou na sequência, foi ele. O antecessor sofria para tornar batalhas em grande escala – com dois ou mais personagens presentes – algo prazeroso ou até mesmo intenso. Lembro-me muito bem das dezenas de táticas que criei para não ter que enfrentar três soldados ao mesmo tempo. O problema foi praticamente sanado com mais opções de golpes, um melhor tutorial e várias áreas que você pode usar para treinar o combate sem se preocupar em perder o progresso.
Eu me entreguei ao mundo de “Kingdom Come: Deliverance 2” de um jeito que eu não me entregava desde jogos como “Red Dead Redemption 2” ou, mais especificamente, “The Elder Scrolls III: Morrowind”. Há uma qualidade que vai da escrita das quests – que variam entre o extremamente sério ao absurdo de hilário – até às várias formas possíveis de completá-las, que poucos jogos conseguem atingir hoje em dia.

É bem provável que, se você o jogar, vai ter uma experiência bastante diferente da minha em como solucionar algumas delas. Pode ser que você não evite a batalha entre as famílias, mas sim jogue mais lenha na fogueira. Você vai ter uma arma diferente da minha, ou até mesmo optar por usar arco e furtividade ao invés de correr em direção ao perigo. Eu sequer cheguei a testar essas possibilidades de tão feliz que eu estava com as minhas escolhas, e não duvido que elas sejam tão gratificantes quanto.
Fiquei até com pena das pessoas com quem eu converso diariamente; eu os importunei tanto com “Kingdom Come: Deliverance 2” que fiquei surpreso que não pararam de falar comigo. Quase todo dia eu vinha com “Você não sabe o que aconteceu no jogo” ou “Finalmente consegui aquela armadura e agora não estou morrendo tanto” para “Então, perdi metade do dinheiro jogando o minigame de dados, estou sofrendo em silêncio”. Como alguém que não costuma comentar tanto sobre o que eu jogo no dia a dia – para isto já basta o site – isso mostra o quão especial foi minha experiência com as sidequests e a liberdade que “Kingdom Come: Deliverance 2” me deu.
Mas os pontos mais altos, e igualmente baixos, acontecem durante a quest principal. Repleta de reviravoltas e com mais circunstâncias inesperadas do que o seu antecessor, ela mostra o quanto a Warhorse Studio melhorou em produzir uma narrativa competente.
A entrega da tão esperada carta, que mencionei no começo do texto, é só o início de uma saga que se entranha nas políticas da região e do período. Pode se preparar para conversas atrás de conversas, quebradas por ocasionais batalhas ou situações de risco em que você precisa realizar uma ação em um tempo determinado para que um personagem importante da história não morra.

Henry é o protagonista da sua própria história, mas ele é um ponto minúsculo dentro de um período tumultuoso do Séc XV. Há muitos momentos em que você quase não tem nenhuma agência dos atos – o que faz com que as situações em que você tem alguma agência sejam ainda mais cruciais. Todavia, a Warhorse ainda tem uma grande dificuldade de fazer com que a sua agência tenha o devido impacto.
Interagir com os sistemas que compõem “Kingdom Come: Deliverance 2” dentro do contexto da quest principal e fora dela chega a ser destoante. Há um notável “meio termo” que a Warhorse Studios teve que se “sucumbir a” para fazer a narrativa principal funcionar. E, por conta disso, há várias quests que são dolorosamente lineares, e algumas vezes requerem soluções tão “forçadas” que parece que eu sem querer troquei de jogo sem perceber. Não chega a atrapalhar ao ponto de me desmotivar a jogá-lo, mas depois de ver os mesmos problemas no primeiro “Kingdom Come: Deliverance”, eles são ainda mais exacerbados pelo contraste com o restante do jogo, que é bem mais polido.
O “problema” de quests principais serem destoantes de um jogo que é muito definido pelas suas mecânicas e sistemas não é uma questão que só a Warhorse Studios enfrenta. Os próprios jogos que citei aqui, como “Morrowind” e “Stalker”, também sofrem das mesmas dores, e a não ser que a desenvolvedora consiga tempo, dinheiro e muitas mecânicas para criar algo no escopo de “Baldur’s Gate 3” – que é a exceção das exceções – eles vão continuar presentes.
O que importa é que, quando você sai dessas seções mais “lineares” ou “forçadas”, você ainda tem uma tremenda dose de trama, de drama, de odiar o mimado do Hans Capon por ter todos os trejeitos de um herdeiro de uma vasta riqueza e se sentir superior aos outros. De começar a gostar dele quando a história avança. Esbarrar com figuras históricas, e saber que você não necessariamente pode mudar o curso do que vai acontecer com elas, mas que mesmo assim vai testemunhar tudo.
“Kingdom Come: Deliverance 2” não hesita em dar alguns golpes baixos, dolorosos. Não sei quantas vezes eu me contorci na cadeira e falei “Não, não era isso que eu queria!”. Mas já estava feito, não tinha como voltar atrás. Às vezes nem era a minha decisão. Afinal, como já disse, Henry é um coadjuvante de uma história muito maior do que ele.
É nessa mistura de contrastes, da dor a liberdade, de intensas batalhas a longas cavalgadas pelo campo que “Kingdom Come: Deliverance 2” encontra a sua força. É, mais uma vez, um incrível feito da Warhorse Studios em conseguir integrar tantas mecânicas sem torná-las maçantes, permear o mapa com momentos singulares e ainda entregar uma história maior e ainda mais marcante do que o seu antecessor. Eu não vou esquecer os campos da Boêmia tão cedo, e espero que você também não.
Kingdom Come: Deliverance 2
Total - 9.5
9.5
Uma sequência maior em escopo, sistemas, mecânicas, e que entrega quase tudo o que prometeu. “Kingdom Come: Deliverance 2” é o jogo para tirar um final de semana para pular de cabeça em uma Boêmia do Séc. XV, fazer trabalhos “mundanos”, ver momentos inusitados, e compartilhar histórias com personagens inesquecíveis. Embora a quest principal ainda sofra com problemas de cadência e linearidade, a Warhorse Studio confeccionou um dos melhores RPGs que joguei em anos. Kingdom Come: Deliverance 2 transforma o mais “banal” em algo fantástico, e, por isso, merece todo o reconhecimento possível.