Quanto mais tempo eu passo cobrindo a indústria de jogos, mais eu noto o quanto damos importância para jogos que — seja por excelência ou nostalgia — se tornaram algum tipo de “pilar” nela. Uma referência que todos os outros desenvolvedores devem almejar alcançar. Caso não, são considerados uma falha. Escrevo isso após acabar minha 10ª partida de “Millennia” (Steam), que para muitos é mais uma tentativa desastrosa de ser um competidor a “Civilization”. Mas, eu peço para que você, por um tempo, remova “Civilization” da equação. O que aconteceria se um jogo desse calibre fosse lançado sem esse ponto de referência? É bem provável que ele se tornasse um tremendo sucesso. A questão é: O último “Civilization” que eu gostei — “Civilization V: A Brave New World” — tem quase 11 anos e eu ainda continuo o usando como ponto de referência de forma desnecessária.
Eu compreenderia a minha posição se ao menos “Millenia” fosse uma sequência ou um spin-off. Mas, eu noto que a minha dificuldade com ele é a mesma que a de “Humankind”. De simplesmente ter a capacidade de abraçar algo que é inevitavelmente “falho”. Foi só depois de muitas atualizações que eu sentei e comecei a entender melhor a proposta de “Humankind” para o gênero e acho uma pena que ela não tenha ido para frente. E, quanto menos eu ouço falar sobre “Millenia” — o que já não é muito para começo de conversa sendo ele um dos jogos mais ignorados na esfera de estratégia em 2024 — eu sinto que a sua proposta original vai ser perdida em meio a outra meia dúzia de artigos, publicações em fórums ou reclamações de que ele não foi o “próximo Civilization”.
“Millenia” jamais vai ser o “próximo Civilization” pois o único que tem chance de tomar esse trono na presente esfera 4X é o próprio “Civilization”. Nem mesmo “Old World”, um jogo que eu amo, chega perto por conta da sua temática e da grande ênfase em eventos e relações interpessoais. E, onde ele consegue um feito incrível com esses sistemas, eu vejo que o título da C Prompt Games faz o mesmo com eras e linhas de produção de forma que é quase impossível ignorar.
Uma das partes mais terríveis da maioria dos 4X é o seu early game. Aperte um botão, veja o turno avançar, escolha a tecnologia óbvia, repita o processo até que você tenha um exército competente ou cultura para começar a moldar o seu estilo de jogo. “Millennia” de cara já tira isso da equação ao gerar fricção para o jogador. “Se você não se mover, nada de bom vai acontecer”. Esse sistema foi também utilizado em “Humankind”, mas sua ênfase em estabelecer narrativa ao invés de priorizar mecânicas de jogo foi algo que me afastou dele.

Quiçá a decisão mais controversa da C Prompt Games é a introdução de um sistema de bárbaros bem mais agressivo do que outros 4X médios. A minha interpretação é que a desenvolvedora quer que o jogador saia da zona de conforto o mais rápido possível para começar a explorar o mapa. E, nada melhor do que bárbaros na porta da sua primeira cidade para você ter a justificativa de atacar os seus acampamentos.
Embora eu ache o número de bárbaros um pouco elevado comparado com outros jogos, eles se encaixam muito bem com outros sistemas essenciais para que “Millennia” se diferencie de outros jogos, os “espíritos nacionais” e o sistema de experiência. Em suma, nada do que você faz no mapa — por menor que seja — é ignorado pelo jogo.
Uma unidade venceu um combate? Você ganha bonus de experiência tanto na unidade em si — que pode ser promovida para líder — e para a sua sociedade no geral. Essa experiência militarista pode ser utilizada, por exemplo, para levantar outro exército em tempos de crise ou guardada para evoluir uma segunda unidade. O mesmo vale para outros tipos de experiência, culturais, de descoberta ou de “melhorias”.
Eu vejo como um sistema elegantíssimo que outra vez, pede para que você crie fricção com outros impérios em favor de alavancar o seu. Corra atrás de pontos de interesse, explore o mapa e estabeleça cidades e obtenha recursos. Ironicamente, “Millennia” não é um jogo onde você controla múltiplas cidades.

Outro ponto que é impossível de não gerar fricção — seja do jogo ou da comunidade — é que as cidades iniciais de “Millennia” fora a sua capital atuam como estados vassalos e você precisa gastar experiência para integrá-los. A proposta e a execução em si são excelentes, principalmente para demonstrar questões de que todas as cidades de um império ou civilização não vão se alinhar com as suas decisões ou podem querer começar independentes. Há muito espaço para melhorar essa narrativa para o jogador, mas é um ponto que eu queria que mais jogos de estratégia fossem ousados o suficiente para tentar.
Quem acompanha meus textos há um bom tempo não vai ficar surpreso com o parágrafo acima. Uma das minhas mecânicas favoritas em “Imperator: Rome” é o fato de que muitos exércitos podem decidir não acatar com as ordens de um líder — especialmente em grupos tribais — se a relação entre o líder da tribo e o general for baixa. É frustrante? Sim, mas esse é justamente o ponto que a equipe de “Imperator: Rome” queria. E, muitas vezes, eu olho para “Millennia” e vejo esse espírito sendo replicado de diversas formas.
Pegue também sistema de eras, que para mim é muito mais interessante do que a tentativa pífia de “Civilization VI” com “Rise and Fall”. Onde o título da Firaxis de “prejudica” se você não completar uma série de tarefas estabelecidas, “Millennia” te dá a chance de ir para uma era alternativa com novos tipos de ameaças, tecnologias e unidades.
O perigo, e até mesmo a punição por falhar em certas tarefas de uma era específica de “Millennia” pode até ser similar a “Civilization VI”, mas é a forma que a C Prompt Games oferece uma “solução” que me atrai muito mais.

Muitas vezes deixei de atingir objetivos específicos por me focar em pesquisa ou até expansão militar. Ao invés de ficar limitado, fui para uma outra era onde meus desafios eram bem diferentes de outras nações e o jogo continuou “fresco”. Sim, o jogo acaba “forçando” todos os outros jogadores da partida a entrarem em uma era de crise, mas isso não significa que estamos em igualdade. Essa é a graça para mim, as punições são “servidas” para todos os jogadores e a fricção entre os sistemas de jogo e como o jogador precisa lidar com ele o ponto alto.
Mas, como eu mencionei no começo do texto, “Millennia” não está isento de sérios, seríssimos problemas. Um deles é o sistema de produção que — embora seja a minha parte favorita do jogo por ser muito mais atraente administrar a sua cidade ao pensar que tipo de economia você quer para ela e como uma estrutura pode ajudar a outra via bônus — falha em prover informação para o jogador de uma forma mais acessível.
Sim, eu consegui encontrar a informação sem muitas dores de cabeça, mas eu também jogo “Rule The Waves 3” e toda vez que eu menciono isso alguém me pergunta se eu tenho um imenso prazer em olhar para planilhas. Sim, eu tenho! E o sistema de produção de “Millennia” não é nada mais do que uma planilha que pode ser muito bem organizada e te dá mais controle do que qualquer outro 4X do estilo que eu já vi! O que a C Prompt Games precisa no momento é tornar essa informação mais fácil de ser digerida, nada mais.
Quando eu olho para trás e reflito sobre as minhas partidas de “Millennia”, mais eu penso que ele teria sido melhor apresentado como um jogo histórico com uma grande camada de complexidade do que utilizar “Civilization VI” ou até mesmo o termo “expanda a sua civilização pelas eras”. Comparações com os jogos da Firaxis são fúteis, eles atendem um público vastamente diferente e que não vai se adequar a proposta da C Prompt Games para Millennia.

Ainda há um caminho muito longo para a desenvolvedora caminhar nos próximos meses. Mecânicas que não mencionei aqui, como diplomacia e religião, requerem um grande rebalanceamento para se tornarem mais acessíveis e aqueles que jogam extremamente “wide” não vão encontrar um jogo agradável para eles.
Eu só quero muito, mas muito, que as pessoas parem de utilizar “Civilization” como um único ponto de referência e ignorar todas as outras tentativas de fazer um jogo sobre civilizações que não se adequam aos moldes impostos pela Firaxis. Aconteceu com “Humankind” e a história se repete com “Millennia”.
Quando um desenvolvedor tenta algo diferente e é mais abraçado pela comunidade, todo mundo ganha. Eu ganho, novos padrões de 4X são estabelecidos e mais formas de interpretarmos esse gênero que aparenta “parado no tempo” embora não esteja graças aos esforços de desenvolvedores independentes ou empresas que apostam em propostas como “Millennia”.
Nem todo jogo de estratégia 4X vai ser para você e, quer saber? Está tudo bem, só não use um único como referência e espere que todos eles se adequem a sua visão. Isso é um recado mais para mim do que para a comunidade em um geral.
Eu ainda não recomendo pegar “Millennia” a não ser que você esteja disposto a enfrentar alguns problemas na interface e apostar que ele vai se tornar melhor. Eu acredito, eu tenho fé de que ele vai se tornar melhor mês após mês. E, sinceramente, mal posso esperar para ver o que a C Prompt Games tem para o seu futuro.