Eu não sou uma pessoa aversa a jogos com conceitos surrealistas. Pelo contrário, alguns dos títulos que eu mais apreciei em 2024 tinham alguma pitada surrealista, como “Arctic Eggs”. Tento abraçar esses elementos sempre que possível. “Dreams of Another” (Steam / PlayStation 5) tornou o processo um tanto quanto… peculiar.
O jogo começa com um dos protagonistas – conhecido apenas como “O Soldado Errante” – em meio a um conflito. Soldados aparecem na tela, e você presume que o mais “comum” em shooters vai acontecer: você precisa eliminá-los. Só que o soldado não consegue puxar o gatilho. Algo o impede de fazer. Culpa, arrependimento, medo? Ele se esconde em um armazém, tenta outra vez, e “falha”. O inimigo o encontra e, pela primeira vez, o soldado o confronta cara a cara. Sua história termina nesse ponto, ou ao menos é o que aparenta de início.
O resto do jogo te coloca no controle do “Homem de Pijama”. Não fica claro se ele de fato tem uma ligação com o “Soldado Errante” — se ele é uma manifestação dos sonhos ou dos anseios dele, ou se ele é um protagonista completamente separado.
A única coisa que fica clara de cara é que o “Homem de Pijama” está em um sonho, mas não o seu sonho. O sonho de alguma outra pessoa. Um sonho no qual ele consegue “moldar”; onde ele tem autonomia, controle e não tem medo de puxar o gatilho.
Aqui jaz uma diferença crucial entre o “Homem de Pijama” e o “Soldado Errante”. Onde um dispara para destruir, o outro dispara para construir. A arma se torna um objeto de “criação”, usada para revelar a verdade escondida no mundo dos sonhos.

Quando você dispara a sua arma no mundo dos sonhos, ela cria objetos do que aparentam ser somente “partículas” ou uma névoa, abre caminhos e revela novas facetas desses sonhos. Algumas dessas facetas são objetos que supostamente foram “esquecidos” pelo tempo e curtas histórias que ocasionalmente se intercalam com a realidade do “Soldado Errante”.
Aqui ele deixa de ser um personagem “jogável”. Você é convidado a ser um espectador de suas ações. Ele continua a não disparar a sua arma, mas as circunstâncias na qual ele se encontra e as pessoas que cruzam o seu caminho são cruciais para o restante da história.
Preciso apontar que “Dreams of Another” é um projeto primariamente de Baiyon, mais conhecido pela franquia “Pixel Junk Eden” e com colaborações como em “Fotonica” da Santa Regione. Ele não tem medo da experimentação, de criar situações desconfortáveis ou que te fazem ponderar sobre o atual estado do mundo.
Uma dessas histórias é do palhaço Cricket, que pensa em vender o seu parque de diversões, já que as suas atrações não funcionam mais para uma multinacional. Outra história abrange um grupo de peixes que tenta escapar de um aquário para desvendar o rumor de um local chamado “O Mar”, onde eles supostamente estão livres.
Ambas as histórias citadas acima reforçam um dos temas mais proeminentes em “Dreams of Another”, de que não há criação sem destruição. De que algo ou alguém precisa ser “destruído”, remoldado para que algo novo surja.

Eu ficaria extremamente frustrado se “Dreams of Another” parasse neste ponto em específico. O tema “Não há criação sem destruição” é extremamente pessoal, e um que eu não necessariamente concordo plenamente. Felizmente, Baiyon tenta apresentar o “outro lado da moeda”, por assim dizer.
Se em um dado momento você fala com o palhaço, você também “fala” com as próprias atrações – supostamente preparadas para serem destruídas. Há um incrível sentimento de dor vindo delas, de que elas não “servem” mais, de que uma vida está sendo extinguida para dar lugar a algo “novo”.
Eu não quero entregar toda a história de bandeja, mas “Dreams of Another” muitas vezes se contradiz. Talvez de forma proposital. Há situações que você sente que está fazendo o “bem” como o “Homem de Pijama”, mas vender um parque de diversões para uma multinacional é – de fato – algo bom?
Uma parte de mim sente que Baiyon tenta apresentar as suas próprias frustrações como artista dentro do capitalismo. “Dreams of Another” traz resquícios de jogos da era “PlayStation 3”, quando experimentalismo ainda era algo que podia ser feito com mais “liberdade” econômica nos consoles. Seja pela movimentação, um pouco travada, ou pela “simplicidade” da jogabilidade. Boa parte da sua jogabilidade é “limitante” em comparação a outros jogos atuais, e seus controles fáceis de entender. O propósito do título não é te desafiar – ao menos não em termos de dificuldade. Não é muito diferente do já citado “Pixeljunk Eden”.
Embora essa bandeira continue sendo carregada por desenvolvedores independentes mundo afora, empresas maiores apostam no “seguro”, no que já não é mais “novidade”, no que vai dar “lucro. Houve um breve período durante a era PlayStation 4 e Nintendo Switch que os desenvolvedores independentes estavam no holofote, mas assim que o seu propósito (preencher a biblioteca com jogos) foi cumprido, eles foram “jogados fora”, tal como as atrações do parque de diversões que deixaram de “funcionar”. Um corte brusco, violento — uma destruição de vida.

É assim que muitos sonhos de “Dreams of Another” terminam, de forma abrupta. Alguns deles não proveem explicações, ou sequer um respingo de “paz”. Eles terminam da mesma forma que começaram, do “nada”.
Pode parecer que eu esteja “reclamando”, mas Baiyon utiliza esses cortes com uma eficácia fascinante. Várias vezes botei o controle na mesa e parei para refletir o que eu tinha acabado de presenciar, e depois aceitar que não há uma resolução para alguns dos conflitos apresentados nesses sonhos.
O que fortalece ainda mais esse aspecto é a sua estrutura não linear. Você pula de sonho em sonho como um viajante. Vendo situações, tentando compreendê-las, e quando menos percebe já é jogado para outra sem que de fato haja tempo para processar tudo.
Apesar dessa não linearidade, há sim um tecido que converge alguns desses sonhos, seja da parte do “Homem de Pijama” ou do “Soldado Errante”. E, quando essas situações aparecem na tela, não posso negar que me senti extremamente gratificado por elas. Mesmo que essa gratificação venha acompanhado de momentos de crises existenciais e um forte silencio contemplativo.
Por outro lado, eu não vou negar que “Dreams of Another” é um título relativamente difícil de penetrar. Ele é deliberadamente lento, não segura a sua mão e muito menos se importa se você vai estar entediado ou não com as suas mecânicas. Até para mim, que tem um histórico com jogos surrealistas, foi complicado.

Mas é aí que reside um dos seus pontos mais fortes. No ato de não se “importar”, ele cria uma reflexão sobre o ato de jogar. Assim como a sua principal temática, o ato de jogar ou de apenas “observar” um ambiente se torna cada vez mais tênue. Ele te pede curiosidade, te pede para “tolerar” sua estrutura não linear, mas não garante que saia contente ou sequer “realizado” da experiência.
Para mim, “Dreams of Another” consegue criar a antítese do jogo. A completa aversão as mecânicas atuais, aos sistemas nos quais ficamos tão acostumados. Em sermos o “Soldado Errante”, em dispararmos sem pensar, em destruirmos sem questionar se, de fato, elas merecem ser destruídas.
Frente a tantos outros jogos em 2025, o projeto de Baiyon é, no mínimo, ousado. Um cujas camadas eu ainda preciso refletir para compreendê-las por completo. E nem sei se vou.
Uma coisa eu sei, que se você tem o menor interesse em surrealismo e repensar o status quo — seja da indústria de jogos, dos seus próprios conceitos, ou do que esperar de jogos — “Dreams of Another” é essencial.
Dreams of Another
Total
Deliberadamente lento, não linear em sua estrutura, e ocasionalmente frustrante, “Dreams of Another” cria a antítese do jogo – do ato de jogar. Baiyon questiona estruturas de poder, a indústria de jogos, capitalismo, o status quo, e se de fato construção requer destruição. Ele não está preocupado em ser um título “para todos”. Mas, para os curiosos, aqueles que querem algo fora do tradicional e repensarem as suas próprias crenças, é essencial.

