Mais uma vez eu vejo o sol nascer. Ouço os cantos dos pássaros, e os primeiros raios de sol banham a cidade, lentamente a tornando mais uma vez viva. Não que ela tenha parado – nenhuma cidade de fato para. “Eu deveria ir dormir”, disse quase que relutantemente. Já era mais do que a hora, mas eu estava prestes a completar uma nova cadeia logística em “Anno 117: Pax Romana” (Steam / Ubisoft Connect / PlayStation 5 / Xbox Series S/X); o que seriam alguns minutos a mais?
Essa não foi a primeira vez que eu fiquei acordado até tarde com os olhos grudados na tela analisando as necessidades da minha população, estabelecendo linhas de produção ou batalhando incêndios. Eu venho fazendo isso há mais de 15 anos desde “Anno 1404”, mas foi com “Anno 1800” – talvez o maior, e mais impactante jogo da franquia – que eu realmente comecei a amá-la.
E não fui só eu; o impacto de “Anno 1800” na comunidade de estratégia e gerenciamento pode ser sentido até hoje. Desde 2019, dezenas de jogos seguiram o caminho pavimentado pela Ubisoft Mainz (antiga Ubisoft Blue Byte), com cadeias de produção, sociedade segmentada por camadas e status social, e elementos de combate em tempo real para acalmar os ânimos daqueles que não queriam apenas construir cidades.
É importante salientar essas mecânicas, pois “Anno 117” é mais uma evolução da fórmula sedimentada por “Anno 1800” do que uma tentativa de revolucionar a franquia, como foi o caso em “Anno 2205” ou – em menor escala – “Anno 2070”.
Se você já jogou algum título da franquia, sabe muito bem o que esperar dela. Você começa com uma cidade modesta, constrói as suas primeiras casas, o seu primeiro mercado, e começa a explorar como atender as demandas dos seus habitantes, sejam elas demandas essenciais ou produtos de luxo.

Mas antes mesmo de você cavar o primeiro buraco, “Anno 117” já te faz uma pergunta bastante peculiar em comparação com o restante da franquia: “Com quem você quer jogar”? Indo na direção contrária dos títulos anteriores, a sequência possui uma campanha mais elaborada em termos narrativos, com personagens fixos — Marcia Tertia ou Marcus Naukratius. Embora eles tenham o mesmo início na ilha de Juliana em Latium, a história dos personagens diverge consideravelmente à medida que você avança em suas respectivas missões.
É uma mudança de ritmo inesperada, mas uma que eu aprovo, e muito; afinal, a campanha da franquia “Anno” é, em grande parte, um gigantesco e longo tutorial. Diria que é um dos tutoriais mais longos que já vi na série, mas necessário para que você aprenda as minuciosidades do jogo. E, acredite, “Anno 117” tem muito mais minuciosidades do que você imagina. E antes que você se desespere, o game retém o modo sandbox — mais sobre ele em breve.
A minha primeira partida foi com Marcia Tertia, denominada governadora da ilha de Juliana após se casar às pressas e ver seu marido ficar doente. A história dela e da sua interação com o imperador se desenrola em meios aos tutoriais; embora a trama não vá ganhar nenhum prêmio – com algumas situações que mais parecem ter saído de uma novela de baixo orçamento – é mais do que o suficiente para dar aquele empurrãozinho para o próximo objetivo, a próxima “conquista” em estabelecer uma grandiosa cidade.
Eu confesso que as animações feitas pela Ubisoft Mainz têm o seu charme e me fizeram dar algumas boas risadas. Destaque para a quest onde você tem que entregar bebidas, peixes, e até telhas para ajudar em uma cerimônia de aniversário. Se um imperador fica desesperado com uma mera cerimônia, o que será dele quando tiver que se preparar para a guerra?
Quando eu não estava sendo a “mão direita” do imperador – se é que posso chamar Marcia disso – eu me focava em prosperar a minha cidade. E, para isso, eu tive que reaprender muitas mecânicas que desde “Anno 1800” eram praticamente naturais para mim.

Para começo, o sistema de especialistas foi reajustado e não existem mais especialistas com um alcance global. Um especialista que, por exemplo, reduz quantidade de força de trabalho necessária para fazendas ou fábricas agora precisa ser posicionado mais próximo às residências. Mercados tiveram o seu impacto reduzido – embora ainda sejam mais do que essenciais para que as diferentes classes sociais de “Anno 117” obtenham os itens do dia a dia.
Todavia, a mudança mais “radical” de todas está nas edificações. Se em “Anno 1800” você simplesmente podia colocar uma padaria no canto do mapa e não se preocupar se as necessidades da população estão sendo atendidas ou não, “Anno 117” vai te punir dolorosamente por isso. Padarias não só aumentam a felicidade da população, mas o lucro gerado pelas diferentes classes da sociedade que a compõem.
Em contrapartida, uma padaria no meio de um conjunto de casas é sinônimo de incêndio. Adivinha o que aconteceu na minha partida? Exatamente, um incêndio que dizimou quarteirões — ainda mais com uma “brigada de incêndio” não estava nem um pouco preparada para lidar com a situação. Juro que o meu intuito não era me tornar um mini Nero.
“Anno 117” é repleto desses pequenos detalhes que ao longo da partida começam a se tornar cada vez mais essenciais, caso queira ter uma população não só contente, mas uma que gere renda e conhecimento. O jogo dá um ponto final à era do construtor onde você podia colocar os locais mais “belos” da sua cidade na frente e esconder as fábricas e fazendas no fundo das ilhas. Eu vejo a mudança como um excelentíssimo avanço em tornar as cidades mais “naturais” – que, acompanhado da nova possibilidade de construir ruas diagonais, algo inédito na série e que demorou mais tempo do que eu imaginava para dar as caras – se torna um paraíso para os perfeccionistas.
Veteranos da franquia devem ter notado uma palavra diferente no parágrafo acima, “conhecimento”, e pensou “Do que você está falando Lucas? Que história é essa de ‘conhecimento’”? Outra inclusão que “Anno 117” faz é a “Discovery Tree” — ou árvore de pesquisa no bom e velho português.

Embora um sistema de pesquisa já havia sido explorado pela Ubisoft Mainz em “Land of the Lions” para “Anno 1800”, a desenvolvedora o coloca no palco central. Separada em três categorias — econômica, cívica e militar — ela garante de bônus globais para certos meios de produção até acesso a novos tipos de ruas e novas construções.
E não pense que esse é mais um sistema que é só “apertar” um botão e esperar a pesquisa ser concluída. Conhecimento requer investimento, e investimento requer dinheiro, e dinheiro requer uma boa organização da sua cidade. É uma excelente ferramenta para destacar não só a evolução de Roma ao longo das décadas, mas também para demonstrar que nada em “Anno 117” é deixado de lado. Tudo tem um propósito.
Imagino que a esta altura você pensa que tudo demora uma eternidade em “Anno 117”, e não é bem assim. A Ubisoft Mainz dá uma “mãozinha” pelo sistema de divindades. Assim que você constrói um templo na sua ilha e escolhe uma divindade, ela imediatamente vai garantir bônus de produção, colheita ou outras tantas vantagens de acordo com a quantidade da sua população.
Eu gostei do sistema que a desenvolvedora usou para replicar o panteão romano, mas senti que faltou um pouco mais de explicação. Eu escolhi Ceres como a minha primeira divindade e sofri para conseguir compreender como obter mais devotos. É um ponto cego em uma interface que eu digo, com tranquilidade, que é uma das melhores que já vi da Ubisoft Mainz.
Uma nota sobre o desempenho de Anno 117: Pax Romana
Assim como “Anno 1800”, “Anno 117” não é um jogo leve, e ele fica cada vez mais pesado de acordo com o tamanho das suas cidades. Entretanto, ele oferece muitas opções para ajustar visuais. Testei ele em um i7-8700K com 64GB de RAM e uma GeForce RTX 3080Ti (12GB), e ele rodou muito bem na qualidade média. Agora, opções muito acima disso – como qualidade máxima incluindo a opção de iluminação global e raytracing – requer uma máquina de ponta, como já tinha sido anunciado pela Ubisoft. Na minha opinião, não vale o sacrifício da taxa de quadros..
Mas não havia tempo para pensar nisso, ao menos não na minha partida. A campanha me preparava para me transportar para a segunda região do jogo — Albion, ou como conhecemos hoje em dia, Grã-Bretanha.
“Anno” ter mais de uma região não é nenhuma novidade em si, mas a maioria delas eram usadas como “portos” para obter matéria-prima e produtos que eram impossíveis de serem cultivados no clima. “Anno 117” vai muito além.

Pisar em Albion foi como começar uma partida em um jogo completamente diferente. Um novo conjunto de regras, uma população que seguia as suas próprias divindades, um mapa completamente diferente — tanto em termos visuais quanto na forma como você posiciona as edificações.
Foi mais ou menos nesse ponto que eu me levantei da cadeira de tão “zonzo” que eu estava com a sobrecarga de informações. “É sério isso, é sério isso mesmo?”, eu me perguntei várias vezes antes de me ajustar na cadeira outra vez para enfrentar o desafio.
Albion é a região “secundária” mais bem elaborada de toda a série. É praticamente um gigantesco processo de reaprendizado em um jogo que, por si só, não é simples de entender. E, como a história nos mostrou, o domínio romano da região nunca foi muito bem-visto pelos habitantes nativos, e isso é refletido em “Anno 117”.
Neste ponto você tem duas escolhas: manter a tradição deles – o que significa menos lucro para a sua região primária – ou lentamente “convertê-los” em cidadãos romanos, criando quase que um híbrido. Não há uma escolha totalmente benéfica; os habitantes locais irão inevitavelmente ficar ressentidos, fazendo com que você perca acesso a alguns bens ou matérias-primas de acordo com as suas escolhas – todas elas graduais, diga-se de passagem.

Eu não posso enfatizar o suficiente o quanto eu adorei essa mudança. Adeus expedições entediantes e repetitivas de “Anno 1800”, e olá Albion de “Anno “117”. Mas, como apontei acima, a nova região tem os seus próprios desafios.
Além do estilo distinto de construção, uma das características marcantes são os seus pântanos. Eles criam sérias restrições sobre como e onde você pode construir.
Armazéns, fazendas de gado para produção de queijo e processadores de resinas são algumas das construções que podem ser colocadas em pântanos, mas ainda assim uma grande parcela delas é praticamente impossível, o que faz com que as cidades de Albion sejam não só muito mais condensadas do que as de Latium, mas também mais exigentes quanto a materiais, já que estradas são produzidas com madeira. Eu pensava que elas iam se tornar o palco para o maior incêndio que já vi em Anno, mas elas viraram algo muito, muito pior.
Palco para guerra.

Junto do combate marítimo que, a esta altura, é tradicional em “Anno”, “Anno 117” adiciona combate terrestre, com diferentes tipos de tropas e elementos como modificadores de terreno e moral.
Eu já tenho um certo “trauma” das tentativas de inserir mais elementos de combate na franquia, mas para a minha surpresa, o sistema é surpreendentemente competente. Ele usa como base o tradicional “pedra-papel-tesoura”. Arqueiros são mais fortes contra lanceiros, mas cavalaria os destrói se você não prestar atenção e recuá-los a tempo.
O mais importante do combate terrestre é como ele se integra ao restante dos elementos de produção do jogo. Quer treinar soldados? Então você precisa produzir espadas ou lanças, e novos soldados significam menos habitantes na sua cidade — não há simulação de exércitos “profissionais” como Roma possuía.
Agora você imagina a minha tristeza ao ver três grupos de arqueiros sendo aniquilados pela cavalaria de um dos invasores de Albion. Eu soltei um “Não” tão triste que parecia que tinha deixado um dos meus bens mais preciosos cair no chão. Eu achei que havia me safado de tais mecânicas após produzir a minha crítica de “Europa Universalis V”, mas pelo visto elas irão me perseguir como um fantasma.
Mas a tensão da guerra não termina em uma só batalha. Em algum momento você vai precisar estabelecer patrulhas, e, dependendo da dificuldade, construir muralhas. E se você leu “muralhas” e pensou que vai necessitar de muito, mas muito material, acertou em cheio.

No fim, tudo volta para manter a sua cidade com uma boa cadeia de produção e uma população feliz (e, de preferência, viva), e nesse aspecto “Anno 117” tem um loop de extração -> produção muito mais atraente que “Anno 1800”. Eu não tenho a menor ideia da quantidade de configurações de cidades que é possível, muito menos de como elas podem evoluir de acordo com o panteão ou a sua priorização no que diz respeito à “Discovery Tree”.
Mas, há certos elementos que nunca mudam, e esses são os sistemas de transporte marítimo e troca mercantil, e a diplomacia – praticamente intocados dos de “Anno 1800”. Eu não necessariamente vejo isso como um problema, mas bem que eu gostaria de mais opções diplomáticas — de longe o elo mais fraco de “Anno 117”.
E quando você se cansar da campanha, que dura pelo menos 20h para cada personagem, você tem o modo sandbox. Esse vai ser o seu prato principal pelos próximos anos e ele retorna tão bom quanto antes.
Há uma vasta seleção de personagens, rivais, suporte a crossplay e pela primeira vez a opção de começar em Latium ou em Albion. Minha recomendação pessoal, caso queira pular direto para ele? Comece em Latium, a não ser que você já tenha um bom conhecimento da franquia e não se importe de sofrer aprendendo Albion.
Do que eu joguei do modo sandbox — e estou muito longe de completar uma partida — tenho a certeza de que “Anno 117: Pax Romana” vai continuar na minha biblioteca por anos a fio. Ainda quero construir cidades diferentes, quero explorar mais deuses do panteão e quero dominar meus inimigos, seja pelo comércio ou pela guerra.

Ele vai ficar lado a lado com “Anno 1800”, pois ele não o suplanta. São períodos diferentes com seus prós e contras. Quando eu sentir falta das fábricas, retorno para “Anno 1800”, quando eu quiser construir obras gigantescas como um coliseu, “Anno 117” vai estar lá para mim.
Esta é a parte da magia da franquia e outro motivo pela qual eu me apaixonei tanto por ela. Cada lançamento da Ubisoft Mainz traz uma nova visão do mundo, uma nova região, um novo tema, e novos desafios logísticos.
Para os novatos, “Anno 117” é o melhor ponto de partida e de longe o jogo mais polido que a Ubisoft Mainz já produziu. E, levando em conta que eu pensei o mesmo sobre “Anno 1800”, isso apenas mostra que a desenvolvedora conseguiu manter a altíssima qualidade, mesmo passando anos produzindo DLCs para o seu antecessor.
Com uma série de DLCs já confirmadas pela frente, “Anno 117” tem um futuro brilhante – mais do que ele já brilha. Bem-vindo de volta, “Anno” — eu senti falta de você.
Anno 117: Pax Romana
Total - 9.5
9.5
“Anno 117: Pax Romana” pega as melhores partes de “Anno 1800” e as unifica com um combate terrestre competente, uma nova região jogável e bastante distinta, sistema de tecnologias e novas cadeias de produção que vão desafiar até os mais veteranos da franquia. A Ubisoft Mainz tem mais um sucesso em mãos. E, se seu antecessor for algum indicador, irei jogá-lo pelos próximos anos.

