Embora 2025 tenha sido um ótimo ano para deck builders, com adições como “Monster Train 2” e “Star Vaders”, ainda lamento a forte influência que “Slay The Spire” tem no gênero. Sinto saudades da época de “Faeria” – que em breve completa 10 anos – e de sua campanha mais “estruturada”. De criar decks que não existissem apenas por meio de um sistema de “draft” e uma pitada extra de narrativa. Após jogar boas horas de “Cross Blitz” (Steam), digo com tranquilidade que as minhas preces foram atendidas.
O projeto da Tako Boy Studios chega para responder uma pergunta que eu tenho há anos: “O que aconteceria se pegássemos algumas das mecânicas de Hearthstone, adicionássemos uma campanha, e não cobrássemos um absurdo para você ter acesso a todas as cartas?”. O resultado é o carro chefe do game, o modo “Fables”.
Composto por cinco personagens — Redcroft, Violet, Quill, Seto, e Mereena — cada um com seus próprios capítulos e tramas, ele atua inicialmente como um “mini-tutorial” e apresenta as aventuras dos personagens pelo mundo de “Cross Blitz” e as suas variadas regiões.
Foi assim que eu comecei a minha jornada com Redcroft, um pirata cujo legado foi manchado após ser culpado erroneamente de ter atacado um navio de suprimentos, e agora luta para limpar o seu nome e voltar a velejar os sete mares.
Antes mesmo de comentar sobre a minha primeira batalha, preciso salientar aqui o incrível trabalho da Tako Boy Studios com os visuais de “Cross Blitz”. Até as cinemáticas mais “simples” são recheadas de carisma e situações inusitadas.

Redcroft, por exemplo, é um pirata esquentadinho e sempre quer partir para briga; muitas vezes é a sua tripulação que o impede de entrar em furadas. O jogo traz um estilo de narrativa leve que gera boas gargalhadas, mas te deixa intrigado o suficiente para descobrir qual é o próximo passo na jornada. No caso de Redcroft, eu precisava encontrar quem me acusou e obter um barco – uma tarefa que parecia muito mais fácil na teoria do que na prática.
Como disse, o modo “Fables” traz consigo um “mini-tutorial”, e bota “mini” nisso. Ele pode ser resumido da seguinte forma: “Aqui estão as suas duas lanes e aqui estão as suas unidades, que chamamos de minions. Coloque-os em suas respectivas posições para defender e atacar o oponente. O resto você descobre na marra. Boa sorte!”.
Antes que você saia correndo pensando “Ah não, mais um deckbuilder que não quer explicar conceitos mais obtusos”, o mini-tutorial de “Cross Blitz” faz perfeito sentido dentro do contexto do jogo. O que a Tako Boy Studios quer – acima de tudo – é que você se arrisque e experimente.
É muito fácil olhar para um pirata esquentadinho como Redcroft e pensar que o seu principal atributo é ganhar cada partida na força bruta. Mas, e se eu te disser que você pode criar um deck repleto de canhões que são ativados assim que uma das suas unidades receber dano?
Ou então, imagine: Usar relíquias que permitem reduzir o custo de certas tropas e criar uma linha de frente que, caso venha a ser derrotada, te recompense com armaduras para que depois você ataque com tudo?

A influência de “Hearthstone” e similares é mais do que notável nas partidas. Ao invés de ter o sistema de “você tem apenas uma quantidade ‘X’ de mana por turnos e não pode aumentá-la”, cada turno aumenta esse número em um ponto. Mas, ao contrário do projeto da Blizzard, “Cross Blitz” utiliza um sistema de fileiras duplas com unidades que atacam da esquerda para a direita. Um paraíso para alguém que, como eu, adora criar decks.
Quando falo de criar decks, não digo no mesmo estilo de “draft” como tantos outros jogos — ao menos não no modo “Fables” (mais sobre o segundo modo de jogo em breve). Quanto mais você avança na história, mais o seu personagem sobe de nível e ganha pontos de habilidade passivos. Esses pontos podem ser usados para liberar novas cartas e novos decks, e aumentar a sua vida máxima.
Assim que você libera um novo deck, ele já está no seu inventário com as cartas base e lista quais cartas são necessárias para completá-lo — muitas delas obtidas à medida que o jogador avança na história, e com acesso às mais diferentes lojas de cartas e relíquias. Relíquias, essas, que oferecem bônus como um aumento de dano de um tipo de unidade ou a possibilidade de sacar mais de uma carta por turnos. Os efeitos são tantos que descrevê-los aqui transformaria essa crítica em uma monografia.
Algumas cartas podem ser compradas, outras precisam ser “construídas” com os materiais obtidos após vencer uma batalha. Salvo as cartas mais raras, que requerem um investimento extra, incluindo possivelmente completar objetivos opcionais das batalhas. É um sistema de “crafting” simples e direto ao ponto; em momento algum eu senti que eu queria arrancar os cabelos. Não que eu tenha muitos, já que venho raspando a minha cabeça para aguentar o calor do Brasil.
Mas, por mais que o jogo ofereça decks pré-construídos, a alma de “Cross Blitz” está na experimentação. Cada inimigo vai testar o seu deck, sua habilidade de posicionar as unidades — escolher qual fileira priorizar — e de compreender o campo de batalha e a fraqueza do seu oponente. Para alguém que adora sentar e montar decks, é um paraíso.

O meu personagem preferido do modo “Fables” é Quill, um rato para lá de safado, com cartas que podem criar armadilhas, “roubar” inimigos e convertê-los em aliados. Eis que então empaquei em um dos chefões de seu segundo capítulo, um rato que entupia o meu deck de bombas toda vez que eu atacava um dos seus minions. A IA desse jogo não brinca em serviço.
Teimoso como sempre, tentei utilizar múltiplas vezes o meu deck principal contra ele até quase desistir. Eis que então parei, olhei para as minhas cartas e pensei. “Ok, se ele coloca bombas no meu deck cada vez que eu ataco um dos seus minions, o que acontece se eu atacar todos de uma vez”? Fui em uma loja, comprei todas as cartas com dano em área e criei um deck híbrido. Uma parte das minhas unidades era focada em converter os minions, e uma pequena parcela causava dano dois ou mais minions. Assim que o chefão colocou o maldito minion que tanto me deu dor de cabeça, eu o puxei para o meu lado da mesa. Ele colocou outro e repetiu o processo.
Já estava no quarto turno e nós dois tínhamos mana suficiente para preencher a mesa inteira com minions, e lá foi ele outra vez com mais dois minions que criavam bombas. Nessa eu soltei dois gigantescos ataques em área que eliminaram a mesa inteira dele – abrindo espaço para eu detoná-lo em um round. Sequer deu tempo de ele colocar uma bomba na minha mão. Quem explodiu foi ele.
É o tipo de vitória que me dá vontade de dar um tapão na mesa e falar: “Viu? Eu avisei para parar, não parou, agora toma!”. Esse tipo de euforia foi repetido várias vezes ao longo do modo “Fables”. Seja ao derrotar um chefão, encontrar uma carta que ia criar uma sinergia maravilhosa com o restante do meu deck, ou vencer uma partida sem tomar um pingo de dano.
E, caso você ache que “Cross Blitz” dá uma colher de sopa só por ter um modo mais “estruturado” e focado na narrativa, esquece. Há dezenas de batalhas opcionais que vão testar o seu deck até dizer “chega”. Ainda mais quando tais inimigos possuem habilidades especiais – chamadas de “Blitz Burst”. Essas habilidades são ativadas assim que o oponente atingir um critério, como invocar “X” cartas de um tipo específico. Vi meus minions serem dizimados, perder uma partida que estava ganha bem no último round e segurar o choro enquanto pensava “Mas…, mas meu deck estava perfeito”.

Por mais que eu rasgue elogios acerca das mecânicas de “Cross Blitz”, a Tako Boy Studios dá algumas deslizadas no que tange a descrição de cartas mais avançadas.
Não há, por exemplo, a distinção se uma carta ou relíquia é de ativação única, ou de quais condições ela precisa para ser ativada. Outras vezes fiquei confuso sobre o porquê de certas unidades voadoras serem capazes de me atacar e outras serem impedidas. O jogo até define relativamente bem o que cada carta faz, mas um glossário avançado ou a opção de um grimório com todas as cartas e variantes teria sido uma excelente adição. (Ironicamente, ele possui um glossário de todas as relíquias e possíveis adições para as suas carta)
O aprendizado desse deslize veio por meio da dor quando eu encontrei uma relíquia que alterava um minion que estivesse em jogo para um aleatório. Mal sabia eu que essa relíquia era ativada no início de cada turno, e isso incluía as minhas unidades. Ver uma das minhas tropas mais poderosas ser transformada em uma galinha foi… triste.
Todavia, tal aprendizado não veio por meio do modo “Fables”, mas pelo “Tusk Tales”, o modo roguelike de “Cross Blitz” — que segue uma rota mais similar a “Slay the Spire”, mas com um “sabor especial” adicionado pela Tako Boy Studios.

Se você já jogou qualquer outro deck builder, sabe bem a estrutura — ou ao menos parte dela. Escolha um personagem e no melhor estilo “draft”, lentamente construa o seu deck. No entanto, ao invés de escolher uma ou duas cartas, você escolhe um conjunto de cartas e até “mercenários” para criar decks híbridos.
O modo em si tem tantas novas mecânicas que até me impressionaram. Ao invés dos entediantes “eventos” que te dão relíquias ou “buffs” para as suas cartas, você pode escolher contratos para eliminar “mini-chefões”. Eles são colocados aleatoriamente no mapa e podem preencher um nódulo que antes servia para recuperar os seus pontos de vida. Há uma loja de relíquias específicas para as unidades e múltiplas formas de aprimorá-las, sem cair no tradicional “agora esta carta causa mais ‘X’ pontos de dano”.
Dizer que eu apenas “arranhei” esse modo de jogo é ser bastante gentil. São mais de 20 personagens-arquétipos e combinações de combos insanas. “Tusk Tales” deita e rola no conceito “risco vs recompensa”. Você vai perder uma run, vai ficar frustrado e, quando menos perceber, vai voltar para a próxima.

Até mesmo a metaprogressão — que eu vi e pensei “Ah pronto, lá vai o jogo me impedir de completar uma run sem ter que acumular moedas e trocar para pontos de vida ou novos recrutas” — tem o seu lugar em “Cross Blitz”. Ele atua mais como uma “ajudinha” do que um elemento essencial. Se você completar o modo “Fables”, vai estar mais do que experiente para jogar “Tusk Tales”. Eu mesmo completei algumas runs com personagens sem sequer subí-los de nível ou liberar novas cartas.
O difícil mesmo foi conseguir parar de jogar “Tusk Tales”. Toda vez que eu completava uma run ou uma das dezenas de áreas que as compõem — cada uma com seu chefão que também possui mecânicas especiais e bastante diferentes das que vi no modo “Fables” — eu pensava: “Mas… e se eu liberar um novo personagem e começar a montar outro deck com ele? Qual será a combinação que a run vai me proporcionar?”. Normalmente me sinto exausto após várias partidas com um deck builder. Com “Cross Blitz”? Eu não queria que elas acabassem.
Eu venho falando que 2025 é um ano que me surpreende a cada semana. Se no começo dele eu lamentava a tendência de tantos deck builders seguirem perto demais elementos de “Slay The Spire”, agora comemoro com “Cross Blitz”.

Ele desliza por não ter um grimório com todas as cartas? Sim. Algumas descrições poderiam ter sido melhor escritas? Com certeza. Mas quando eu encontrava a combinação perfeita de minions, habilidades, relíquias e tantos outros elementos que o gigantesco jogo da Tako Boy Studios oferece, era impossível esconder o sorriso no meu rosto.
“Cross Blitz” entra para o pequeníssimo panteão de jogos de deckbuilders pelos quais tenho profunda admiração. Ele tem equilíbrio entre narrativa e uma campanha bem estruturada, uma ótima seleção de cartas, arquétipos, e mecânicas que me fazem salivar só de pensar nas possibilidades. Até mesmo o modo roguelike, que eu não dava nada, virou um queridinho meu.
É mais do que uma recomendação para fãs do gênero; é essencial para quem está cansado da “mesmice” que vivemos nos últimos anos. A Tako Boy Studios merece todos os louros possíveis.
Agora, se eu desaparecer, vocês provavelmente me encontrarão terminando os objetivos opcionais do modo “Fables” ou no modo “Tusk Tales”. Por favor, alguém tire esse jogo do meu computador.
Cross Blitz
Total - 9.5
9.5
“Cross Blitz” traz uma ótima campanha repleta de situações engraçadas, um sistema de construção de decks intuitivo sem perder complexidade para quem gosta de ajustar os mínimos detalhes, e boas mecânicas de combate — algumas até inusitadas para o gênero. De quebra, o seu modo roguelike dá um banho de qualidade se comparado a outros que joguei nos últimos anos. Só faltou um grimório e descrições melhores de certas cartas.

